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Sombras coloniais, da Vila Algarve ao Uíge (Massacres em Angola e Moçambique)

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O trabalho de Sandra Araújo sobre os arquivos da PIDE em Moçambique desmonta um dos silêncios mais pesados da nossa história contemporânea. Durante a guerra colonial, as prisões da Machava e da Vila Algarve tornaram-se sinónimos de dor, espaços onde a tortura e o medo eram instrumentos oficiais do Estado. A PIDE não se limitava à vigilância; estruturava uma rede de informação, interrogatórios e punições que atravessava todo o território, desde os grandes centros urbanos até às pequenas aldeias rurais. A documentação revela detenções arbitrárias, execução de líderes comunitários, destruição de casas e apreensão sistemática de propriedades, tudo justificado pela lógica de manutenção da “ordem colonial”.

A linguagem dos documentos é fria, quase administrativa, como se a destruição de vidas pudesse caber numa estatística. Ao examinar os arquivos da PIDE, constata-se que cada ato de violência era registado com minúcia: datas, horários, nomes das vítimas, locais de detenção, interrogatórios realizados e resultados das prisões. Entre os arquivos, encontram-se instruções diretas de Lisboa, demonstrando como a repressão não era improvisada, mas uma política cuidadosamente desenhada por técnicos do Estado Novo, com o objetivo de consolidar o poder português em África e sufocar qualquer sinal de contestação política ou nacionalista.

O massacre de 1961 no Uíge, em Angola, exemplifica de forma crua a operacionalização desta lógica repressiva. Custódio Ramos, agente da PIDE destacado na região, relata ao governo em Lisboa a execução de detenções em massa, a destruição de aldeias e a morte de centenas de civis. As palavras do relatório são deliberadamente frias, mas o horror implícito é inegável: homens, mulheres e crianças tratados como inimigos por uma administração colonial que se autojustificava com eufemismos de “ordem” e “segurança”. Este episódio não foi um desvio, mas a aplicação concreta de um sistema de terror que tinha raízes profundas na cultura administrativa do Estado Novo.

Em Moçambique, a lógica da repressão reproduzia-se em escala sistemática. A Machava e a Vila Algarve eram centros nevrálgicos do aparato policial, onde se experimentava a intimidação psicológica, a tortura física e a humilhação ritualizada. A PIDE monitorava líderes religiosos, professores, comerciantes e qualquer cidadão suspeito de manter contacto com movimentos independentistas. A repressão era justificada com o argumento da preservação da “cultura portuguesa” e da “coerência do império”, mas na realidade servia apenas para consolidar o poder do regime e esmagar qualquer forma de resistência.

Após o 25 de Abril, esperava-se que a democracia reparasse estas injustiças. Assistiu-se, porém, ao arquivamento sistemático de processos, à diluição de investigações e à absolvição de agentes que haviam perpetrado atrocidades. Muitos dos que comandaram prisões clandestinas e operações de massacre regressaram à vida civil sem nunca responder pelos crimes cometidos. A transição democrática foi generosa com os algozes e indiferente com as vítimas, transformando a memória em território interditado.

Moçambique e Angola não são capítulos isolados, mas páginas de um mesmo livro escrito a sangue. A repressão colonial portuguesa demonstrou uma lógica de Estado sofisticada, combinando inteligência, burocracia e violência organizada. Reconhecê-lo não é um exercício de autoflagelação, mas um ato de responsabilidade histórica. Só ao aceitar que a violência não foi exceção, mas regra, poderemos construir uma memória coletiva honesta e consistente.

Portugal habituou-se a celebrar a epopeia ultramarina, mas hesita em encarar os massacres e a violência sistemática. Os relatórios da PIDE em Moçambique e Angola são o espelho do lado mais negro da nossa história contemporânea. Ignorá-los é prolongar a mentira. Lê-los é, finalmente, dar voz às vítimas e afirmar que o seu sofrimento não será apagado pelo silêncio oficial.


Paulo Freitas do Amaral

Professor, Historiador e Autor

 
 
 

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