Palavras mouriscas na nossa língua
- correio_da_historia

- 7 de set.
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A língua portuguesa guarda no seu corpo as marcas de quase oito séculos de presença islâmica na Península Ibérica. Entre os ecos dessa convivência permanecem as palavras que hoje usamos sem pensar na sua origem. A herança árabe não está apenas nos castelos, nas muralhas ou nas cidades do sul. Vive também no vocabulário mais simples e quotidiano.
O exemplo mais célebre surge em oxalá. A palavra nasceu da expressão árabe in shā’ Allāh, traduzida como “se Deus quiser”. Tornou-se desejo, esperança e oração. No século XXI continua a soar nos lábios de qualquer português que suspira por um futuro melhor.
O prefixo al denuncia de imediato a raiz mourisca. Alfaiate, almofada, alface, alfândega, almirante, alcachofra, algodão. A enumeração poderia encher páginas inteiras. O artigo definido árabe, equivalente ao nosso “o” ou “a”, deixou marcas visíveis em palavras que designam ofícios, produtos agrícolas, utensílios de casa e até cargos militares. Cada termo recorda que o contacto não se limitou à guerra. Houve também comércio, ciência e saber prático.
Outras palavras chegaram mais discretas, sem o prefixo. Azeite, de az-zayt, tornou-se inseparável da mesa portuguesa. Açúcar, de as-sukkar, mudou os hábitos alimentares e trouxe novas doçarias. Armazém, de al-maẖzan, entrou na economia urbana. Algarismo, herança da matemática árabe, permitiu avanços no cálculo. Xadrez, de shaṭranj, transportou um jogo oriental que se transformou em metáfora de estratégia e poder.
A astronomia também fala árabe. Os céus que os navegadores portugueses perscrutaram receberam nomes transmitidos pelo Islão. Algol, estrela da constelação de Perseu, deriva de al-ghūl, o demónio. Aldebarã, no Touro, vem de al-dabarān, o perseguidor. Altair, da Águia, tem origem em al-ṭā’ir, a ave. A própria palavra nadir nasceu de naẓīr, oposto, e zenite de samt, direção. O vocabulário científico que guiou caravelas no Atlântico estava impregnado de palavras árabes.
A matemática não ficou atrás. Termos como álgebra, de al-jabr, significam redução e reunião. Algoritmo recorda o nome de al-Khwarizmi, sábio persa cujos tratados circularam na Europa medieval. A língua portuguesa conserva assim a memória de uma revolução intelectual que permitiu calcular, medir e explorar o mundo.
No domínio da agricultura, as palavras também testemunham essa herança. Nora, mecanismo de rega, vem de nā‘ūra. Azequia, canal de irrigação, vem de as-sāqiya. A paisagem rural peninsular foi moldada por técnicas introduzidas durante a ocupação islâmica e o vocabulário sobreviveu para o lembrar.
Cada uma destas palavras funciona como documento vivo. Revela que a história peninsular não foi feita apenas de conquistas e reconquistas, mas também de encontros culturais. Quem hoje pede uma simples salada com alface e azeite repete sem o saber um gesto carregado de séculos de convivência entre civilizações.
Oxalá possamos continuar a reconhecer nestes ecos linguísticos não apenas recordações de um passado distante, mas sinais de que o diálogo entre culturas enriquece e permanece. A língua portuguesa guarda esses testemunhos e oferece-os a cada geração como memória e como promessa.
Paulo Freitas do Amaral
Professor, Historiador e Autor





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