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O último passo do primeiro rei


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Foi junto às muralhas de Badajoz, numa tarde abafada de 1169, que o corpo do rei cedeu onde a alma nunca vacilara. D. Afonso Henriques, senhor de guerras e fundador de reinos, caiu do cavalo ao tentar resgatar o genro aprisionado. A queda foi dura. A perna ficou esmagada. A dor foi tanta que, dizem, não gritou. Apenas fechou os olhos como quem aceita que, um dia, até os maiores precisam de parar.

 

A notícia correu depressa. O rei estava ferido. Já não montava, já não marchava, já não comandava como antes. Um homem que fora muralha do seu povo agora coxeava. E nesse passo trémulo começava a desenhar-se a sua última e mais difícil conquista: a de abdicar sem abdicar, a de reinar sem estar no centro da batalha.

 

Com os músculos cansados e os ossos doridos, retirou-se para Coimbra. Não por derrota, mas por sabedoria. Entendeu que era tempo de preparar o filho. De não cair no erro de tantos outros reis, que levaram os tronos consigo para o túmulo. Chamou D. Sancho, confiou-lhe tarefas, entregou-lhe campanhas, deu-lhe poder como quem ensina um filho a andar com as próprias pernas. E Sancho andou. O reino seguiu. Portugal não estremeceu.

 

Nos corredores da sua residência, onde outrora se desenhavam planos de cerco e tratados com Roma, agora ouvia-se o arrastar lento da bengala. Mas não havia humilhação nesse som. Havia dignidade. O velho rei, cansado mas atento, observava de longe o que tinha construído. Era um homem a envelhecer dentro da obra que ele próprio tinha erguido. Já não precisava de estar no campo de batalha. Bastava-lhe saber que o país existia.

 

Não se conhece uma última frase. Não há um testamento heroico nem um clamor final. Apenas o silêncio. Morreu em dezembro de 1185, com mais de setenta anos, idade que poucos alcançavam. Partiu como vivera: com força contida, com fé discreta, com sentido de dever. Sem palco. Sem cortejos. Apenas um corpo deitado num leito simples e o peso da História pousado sobre o peito.

 

Foi enterrado em Coimbra. Não com pompa. Não com aparato. Apenas com respeito. A lápide não grita, mas todos a escutam. É a pedra de um rei que não precisou de morrer em combate para provar quem era. Porque a sua última vitória foi, afinal, a mais humana. Soube deixar. Soube confiar. Soube sair.

 

Portugal nasceu da espada, mas sobreviveu porque esse homem, já velho e ferido, soube dar o último passo no momento certo.

 

O mais difícil.

O mais nobre.

O mais português.

 

 
 
 

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