O silêncio da pedra que fala há 5000 anos
- correio_da_historia

- 27 de set.
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Na Andaluzia foi encontrado um túmulo com cinco mil anos. Mede treze metros de comprimento, ergue-se com lajes verticais de dois metros de altura e guarda no interior ossadas de várias gerações. É uma construção que impressiona não apenas pela dimensão, mas pela forma como resiste ao tempo, impondo presença na paisagem e na memória.
Como em todas as grandes sepulturas colectivas do Neolítico, o monumento fala-nos não só dos que morreram, mas dos que viveram. Os ossários espalhados dentro deste dólmen revelam práticas funerárias alargadas, não um corpo, mas muitos corpos, ao longo de gerações. E o sítio assegura-nos que as sociedades dessas eras longínquas já tinham horizontes que ultrapassavam o círculo íntimo do aldeamento: as conchas marinhas, o marfim, as pontas de seta e uma alabarda acusam rotas de intercâmbio, trocas de prestígio, talvez peregrinações ou comércio rústico mas real. Há uma tensão entre o silencioso ermo do tempo e a ruidosa actividade humana que esse espaço de pedra testemunhou.
A dimensão do túmulo indica algo mais que pragmatismo mortuário. Sugere uma crença, uma hierarquia, um modo de estar na comunidade, um culto talvez, ou uma memória partilhada que justificasse o esforço de erguer ortóstatos monumentais, cobri-los com lajes horizontais, cercar tudo com um monte de areia e pequenas pedras. Não se trata apenas de enterrar, mas de erguer símbolo, de marcar paisagem com corpo humano, com mito, com memória, de afirmar identidade.
O tempo pré-histórico, esse perene mistério, ensina-nos que os seres humanos sempre souberam da morte como presença inevitável, e da vida como tarefa de durar, não só sobreviver, mas ser lembrado. A presença do mar nas trocas, o prestígio e o símbolo espelham uma necessidade antiga de nos situarmos no mundo, não apenas entre vizinhos, mas entre mares e caminhos.
Hoje, quando civilizações inteiras se perguntam sobre o apagamento da memória sob o peso da obsolescência digital, estas estruturas de pedra insultam-nos. Nós, que tantas vezes falhamos em conservar a memória recente, que desvalorizamos monumentos e memoriais, olhamos para estas lajes verticais, estas conchas, estas ossadas, e percebemos que, se quisermos, somos tão mortais e efémeros quanto os nossos antepassados. Mas também que somos uma ponte para o invisível, se nos dermos conta.
O novo dólmen da Andaluzia não é só um túmulo, é um livro aberto para quem quiser ler. Há centenas de perguntas enterradas — quem foram estas pessoas, como viviam, o que acreditavam, como organizavam o seu mundo — e poucas certezas. Mas talvez não seja necessário responder a tudo. Talvez baste escutar o silêncio que o monumento impõe e aprender a venerar o que permanece. Porque o que permanece é, afinal, aquilo que define o que somos. E aquilo que somos, passados cinco mil anos, continua a depender do nosso desejo de lembrar.
Paulo Freitas do Amaral
Professor, Historiador e Autor





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