O mosaico de Santa Sofia onde o poder terreno se curva diante do sagrado
- correio_da_historia

- 1 de set.
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Nas galerias superiores da antiga basílica de Santa Sofia, em Istambul, encontra-se um dos testemunhos mais expressivos do encontro entre o poder político e a transcendência religiosa. Trata-se do célebre mosaico onde a Virgem Maria, sentada no trono com o Menino ao colo, recebe as ofertas de dois imperadores bizantinos. À esquerda, Constantino apresenta a cidade que fundou, Constantinopla. À direita, Justiniano entrega a igreja monumental que erguera como símbolo da fé cristã e da glória imperial.
O mosaico, datado do século X, foi executado já depois do fim da crise iconoclasta que abalara Bizâncio durante mais de um século. Nesse período, a destruição sistemática de imagens religiosas dividiu o império entre defensores e opositores da veneração de ícones. O regresso da arte sacra à basílica não foi apenas um gesto estético, mas sobretudo uma afirmação de ortodoxia e de continuidade. Ao colocar a Mãe de Deus como figura central, rodeada pelos dois maiores construtores da cidade, o império declarava-se herdeiro de uma tradição inquebrantável, unindo passado fundador e presente glorioso.
A escolha de Constantino e Justiniano não foi casual. Constantino, que transformara Bizâncio em Nova Roma, era lembrado como o primeiro imperador cristão, o visionário que dera à fé um trono no coração do império. Justiniano, por sua vez, representava a magnificência arquitetónica e jurídica, o soberano que edificara Santa Sofia e codificara as leis que moldariam a civilização europeia. Ambos surgem em atitude de humildade, oferecendo as suas maiores realizações à intercessão da Mãe de Cristo.
O simbolismo é claro. O poder imperial, que na terra se pretendia absoluto, curvava-se diante da autoridade espiritual. A cidade e a basílica, pilares da identidade bizantina, apareciam como dádivas humanas submetidas ao desígnio divino. Nessa imagem, eternizada em tesselas douradas e azuis, o espectador sente a fusão entre política e religião que caracterizou Bizâncio: a noção de que a capital e a igreja não pertenciam apenas ao imperador, mas eram património da fé universal.
Hoje, ao percorrer as galerias de Santa Sofia, entre o fulgor bizantino e as inscrições islâmicas que testemunham séculos de transformação, o visitante encontra nesse mosaico a síntese da história de Constantinopla. Cidade entregue à Virgem pela mão do seu fundador e a igreja oferecida como jóia da cristandade, recordando que o destino de impérios e monumentos só se cumpre quando se reconhece o que os transcende.
Paulo Freitas do Amaral
Professor, Historiador e Autor





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