O manuscrito que ecoa as pragas do Egito
- correio_da_historia

- 18 de set.
- 2 min de leitura

Há descobertas históricas que nos obrigam a revisitar antigas narrativas com um olhar mais atento. Uma delas é a existência de um manuscrito egípcio com cerca de três mil anos, conhecido como Papiro de Ipuwer, que, ainda hoje, intriga arqueólogos, biblistas e historiadores. Nele se descrevem catástrofes sucessivas: rios transformados em sangue, fome generalizada, escuridão sobre a terra e a morte de crianças nas famílias mais abastadas.
Quem lê este texto antigo não deixa de pensar imediatamente no relato bíblico das Dez Pragas do Egito, narradas no Livro do Êxodo. A coincidência é demasiado impressionante para ser ignorada: os ecos de um desastre natural ou social parecem ter atravessado os séculos, ganhando a forma de mito religioso, mas deixando atrás de si a sombra de um acontecimento histórico.
O Papiro de Ipuwer, escrito em tom de lamentação, não menciona Moisés, nem israelitas, nem um Deus que intervém diretamente na ordem natural. E, no entanto, os paralelos são evidentes. Talvez não tenhamos aqui uma prova irrefutável da veracidade literal do texto bíblico, mas sim um testemunho contemporâneo de uma crise de enormes proporções que deixou marcas profundas na memória coletiva.
Os estudiosos dividem-se. Uns veem no manuscrito a confirmação de que as pragas do Egito não são mera construção literária, mas antes a transfiguração de acontecimentos reais – secas, inundações, epidemias ou fenómenos climáticos extremos que devastaram o vale do Nilo. Outros, mais cautelosos, lembram-nos que estamos perante poesia, não um relatório. A função do escriba Ipuwer seria a de amplificar o caos social, dramatizando a ruína de uma ordem que parecia eterna.
Mas, seja qual for a interpretação, o valor histórico é indiscutível. Este papiro mostra-nos como, desde a Antiguidade, os homens procuraram sentido para os seus sofrimentos, transformando calamidades em narrativas que atravessaram os séculos. Talvez a grande lição do Papiro de Ipuwer esteja menos na confirmação factual do Êxodo e mais na capacidade que o ser humano tem de narrar o desastre para o tornar suportável, de dar voz ao sofrimento para lhe encontrar uma ordem.
Em tempos de crises globais – ambientais, sociais, espirituais – não podemos deixar de nos rever nesse mesmo esforço. Três mil anos depois, continuamos a escrever papiros, agora digitais, onde registamos as nossas pragas modernas. E, tal como no Egito antigo, cabe-nos a tarefa de interpretar, compreender e transformar a tragédia em memória, e a memória em futuro.
Paulo Freitas do Amaral
Professor, Historiador e Autor





Comentários