O Cão pré-histórico português
- correio_da_historia

- 20 de set.
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Há descobertas arqueológicas que, mais do que nos falarem de datas, ossos ou cronologias, nos tocam naquilo que temos de mais humano: a capacidade de sentir e de estabelecer vínculos. O chamado “Cão de Muge” é um desses raros achados que, vindos do fundo da pré-história, nos interpelam diretamente como homens e mulheres do presente.
Nas margens do Tejo e do Sorraia, em Muge, foram descobertos, já no século XIX, os célebres concheiros mesolíticos — autênticas bibliotecas naturais onde se acumulam conchas, ossadas e objetos de comunidades que viveram há cerca de sete a oito mil anos. Foi nesse contexto que surgiu o esqueleto de um cão, mais tarde guardado no Museu Nacional de Arqueologia, em Lisboa, durante décadas. Uma presença silenciosa, à espera de que a ciência tivesse ferramentas para contar a sua história.
E essa história começou a ser contada agora. Graças a análises tecnológicas recentes, sabemos que o animal teria vivido entre 2 e 6 anos de idade. Mais revelador ainda: foi depositado com cuidado, num gesto que transcende o simples descarte de restos animais. A arqueologia mostra-nos, com rigor quase científico, aquilo que o coração humano já adivinhava: há milhares de anos, os homens do Mesolítico olhavam para os cães não apenas como auxiliares de caça, mas como companheiros, dignos de afeto e de memória.
Este dado comove porque nos humaniza. Em Muge, muito antes de a agricultura se consolidar, muito antes das cidades e dos impérios, alguém se inclinou sobre o corpo de um cão e decidiu dar-lhe um fim digno. Esse gesto, conservado no silêncio das areias e conchas do Ribatejo, é um testemunho de proximidade, de confiança e até, diria, de amor.
Não se trata, portanto, apenas de um achado arqueológico. Trata-se de um símbolo da antiguidade da ligação entre o homem e o cão. Uma ligação que continua a marcar-nos, seja no campo ribatejano, nas cidades ou nas nossas casas. Ao olharmos para o “Cão de Muge”, reconhecemos que a amizade entre espécies atravessa o tempo como uma das mais belas constantes da condição humana.
O Ribatejo, terra de rios e de memórias, não nos dá apenas paisagens férteis e tradições vivas. Dá-nos também esta janela para um passado remoto que continua a iluminar o presente. O “Cão pré-histórico português” é, assim, um motivo de orgulho para todos nós: mostra ao mundo que, aqui, na beira do Sorraia, nasceu uma das mais antigas histórias de amizade da humanidade.
Paulo Freitas do Amaral
Professor, Historiador e Autor





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