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O Corpo Expedicionário Português: histórias de lama, frio e sardinha

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A presença do Corpo Expedicionário Português na Frente Ocidental foi, para muitos, uma surpresa amarga. Partiram em 1917 mais de cinquenta e cinco mil homens, vestidos com uma farda azul-ferrete que depressa se manchou na lama das Flandres. A cor, demasiado visível, contrastava com os tons acastanhados dos britânicos e com os cinzentos dos alemães, tornando os portugueses alvo fácil na paisagem enlameada. O capacete de aço britânico, conhecido como Brodie, foi distribuído mais tarde, mas não em quantidade suficiente para proteger todos.

A vida quotidiana nas trincheiras reduzia-se ao essencial. As rações, fornecidas pelos britânicos, incluíam carne enlatada, bolachas duras e chá, mas os portugueses recebiam sobretudo sardinha em conserva e feijão, repetidos até à exaustão. Muitos improvisavam fogueiras para aquecer o caldo, desafiando as ordens militares que proibiam lume à noite. Um capacete inutilizado servia às vezes de panela, cozinhando batatas como se fosse um gesto de resistência contra a monotonia da guerra.

O frio era um inimigo permanente. Homens vindos de Lisboa, do Alentejo ou do Algarve não estavam preparados para os invernos cortantes do norte de França. Os capotes não chegavam para conter a humidade das trincheiras inundadas, onde se contraía o “pé de trincheira”, uma infecção provocada pela água gelada e pela lama constante. Os piolhos acompanhavam cada soldado como uma praga inevitável. Nos relatos surgem descrições quase humorísticas sobre as “espécies” de piolhos que infestavam a roupa, mas o incómodo era devastador para a moral.

As cartas enviadas para casa revelam uma mistura de saudade e de engano piedoso. Muitos descreviam a frente como se fosse um quartel vulgar, escondendo os bombardeamentos e os mortos. As encomendas de Portugal, com alheiras, trutas ou garrafas de vinho, chegavam por vezes estragadas, mas quando vinham em boas condições transformavam-se num festim que contrastava com as conservas britânicas. O vinho, sobretudo, funcionava como bálsamo e identidade: era a lembrança líquida da terra distante.

A convivência com os aliados era curiosa. Os britânicos estranhavam os hábitos alimentares portugueses, riam-se do chouriço guardado na mochila e admiravam a teimosia de improvisar refeições quentes em condições adversas. Mais de uma vez ofereceram chá para aquecer os camaradas latinos, espantados com a sua resistência física mas também com a sua vulnerabilidade ao frio.

Na tragédia de La Lys, em abril de 1918, todo este mundo improvisado ruiu. Tropas mal alimentadas, cansadas e com equipamento irregular enfrentaram o peso esmagador da ofensiva alemã. A derrota foi inevitável, mas a coragem e a resistência individual de muitos soldados ficou registada, mesmo que durante décadas tenha permanecido esquecida.

Hoje, ao visitar o Cemitério Militar Português de Richebourg-l’Avoué, em França, percebe-se a dimensão desse sacrifício. Mais de mil e oitocentos soldados ali repousam, longe da pátria por que lutaram, sob cruzes alinhadas em silêncio. Mas não estão sozinhos: há também portugueses sepultados em cemitérios britânicos espalhados pela Flandres, lado a lado com ingleses, canadianos, sul-africanos e indianos. São jazigos partilhados que mostram como a morte uniu homens de continentes distantes sob o mesmo céu cinzento da guerra.

Durante anos, estes locais de memória foram esquecidos, entregues ao abandono, mas recuperaram dignidade graças a esforços recentes de diplomacia e de história. Visitar Richebourg e os cemitérios aliados onde repousam portugueses é confrontar-se com a realidade nua de um país pequeno que ousou participar numa guerra imensa.

O CEP não foi apenas um corpo militar, foi um retrato condensado de Portugal em 1917: pobre, improvisador, resistente, mas lançado numa guerra industrial para a qual não estava preparado. Entre a farda azul, a lata de sardinha e o capacete usado como panela, construiu-se uma epopeia de sacrifício que ainda procura lugar na memória coletiva.

 
 
 

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