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O acampamento esquecido que revela os primeiros habitantes da Escócia

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A paisagem tranquila de Guardbridge, em Fife, escondeu durante milhares de anos sinais da presença humana mais antiga da Escócia. Escavações realizadas antes da construção de um novo empreendimento habitacional revelaram vestígios de um acampamento mesolítico com cerca de doze mil anos. Restos de fogueiras em forma de estrela, utensílios em sílex e estruturas de abrigo testemunham a adaptação de pequenos grupos de caçadores-recolectores a um território moldado pelo recuo dos glaciares.

O sítio arqueológico oferece uma janela rara para o modo de vida das comunidades que chegaram à Escócia logo após o fim da última Idade do Gelo. Grupos móveis deslocavam-se em função da caça, da pesca e da recolha de moluscos ao longo da costa. A disposição das fogueiras em círculo sugere a partilha de alimentos e a existência de rituais comunitários, num tempo em que a sobrevivência dependia da solidariedade e da memória transmitida oralmente.

Os arqueólogos identificaram também vestígios posteriores do Neolítico e da Idade do Bronze. Moldes de metalurgia, fragmentos de cerâmica e restos de cabanas revelam uma longa continuidade de ocupação que atravessou milénios. O mesmo espaço que servira de abrigo a caçadores nómadas transformou-se em área de experimentação agrícola e depois em oficina artesanal. A sucessão de camadas arqueológicas mostra a passagem gradual de sociedades de subsistência para comunidades mais complexas e sedentárias.

A descoberta insere-se numa tradição arqueológica que tem vindo a redesenhar o mapa das origens da Escócia. Durante décadas acreditou-se que as primeiras comunidades teriam ocupado preferencialmente a costa ocidental. Os achados de Guardbridge obrigam a rever essa visão, demonstrando que a costa oriental também foi centro vital de fixação humana e inovação cultural.

A riqueza pré-histórica da Escócia não se limita a Guardbridge. As ilhas Órcades preservam um dos mais notáveis complexos neolíticos da Europa. O povoado de Skara Brae, habitado há mais de cinco mil anos, mantém casas em pedra interligadas por passagens cobertas. O mobiliário em pedra, as lareiras e os recipientes escavados no solo revelam uma sociedade organizada e atenta ao conforto. O alinhamento megalítico de Stenness e o anel de Brodgar mostram que estas comunidades tinham também uma dimensão ritual e simbólica, capaz de erguer monumentos que desafiam o tempo.

O Neolítico escocês encontra paralelo em outros locais como Kilmartin Glen, onde centenas de pedras gravadas, túmulos e círculos megalíticos testemunham práticas religiosas complexas. A partir da Idade do Bronze, a introdução da metalurgia conferiu novos instrumentos e armas que alteraram as relações de poder. A Idade do Ferro consolidou esta evolução, com fortalezas como as brochs, torres de pedra circulares erguidas no norte e nas ilhas, que mostram um mundo de competição, defesa e identidade comunitária.

O acampamento de Fife recorda que a identidade escocesa assenta numa história muito mais profunda do que a memória escrita. Cada fragmento de pedra lascada e cada marca de fogo no solo testemunham a presença de homens e mulheres que, há milhares de anos, procuraram abrigo e sustento no mesmo território que hoje continua a ser habitado. A arqueologia devolve-nos a consciência de que os alicerces da Europa do Norte nasceram da resiliência de pequenos grupos que souberam transformar um ambiente inóspito em espaço de vida.


Paulo Freitas do Amaral

Professor, Historiador e Autor

 
 
 

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