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Na Inglaterra, o calor descobriu o passado pela cor da relva

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Neste verão de temperaturas extremas o solo de Inglaterra tornou-se involuntariamente um tradutor do tempo. O calor implacável revelou rastos silenciosos sob a relva, vestígios de construções medievais e de épocas ainda mais remotas, apenas perceptíveis através das marcas deixadas pela vegetação seca.

Em Fountains Abbey, na região de North Yorkshire, surgiram no relvado as fundações soterradas de um antigo salão de hóspedes e de um claustro dos irmãos leigos. No sul, em Mottisfont, Hampshire, apareceram linhas que denunciam as paredes do século XIII e as alterações introduzidas no tempo dos Tudor. A paisagem que parecia uniforme ganhou, de repente, o desenho secreto de séculos de história.

Este fenómeno é conhecido como parchmarks. Acontece quando o terreno sobre estruturas enterradas seca mais depressa e a relva adquire tons amarelecidos ou morre por completo, enquanto as áreas vizinhas mantêm o verde. A vegetação passa a desenhar no chão os mapas invisíveis do subsolo e oferece aos arqueólogos pistas que nenhuma escavação imediata conseguiria fornecer.

A fotografia aérea foi a grande aliada desta revelação. Aviões, drones e até o olhar curioso de quem caminhava junto aos campos puderam testemunhar a súbita aparição de formas geométricas na paisagem. Foram identificados não apenas edifícios medievais mas também traços de monumentos pré-históricos, assentamentos romanos, necrópoles e jardins ornamentais de séculos posteriores.

Não se trata de um acontecimento único mas de um fenómeno que surge de tempos em tempos em verões de grande secura. As alterações climáticas, contudo, tornam-no cada vez mais frequente e precoce. Neste ano as marcas apareceram semanas antes do habitual, revelando com nitidez incomum os segredos da terra.

Há aqui uma lição discreta mas poderosa. A história não se esconde apenas em livros e monumentos visitáveis. Está também enterrada debaixo dos nossos pés, à espera da conjugação perfeita de calor e ausência de chuva para se tornar visível. A relva que se torna frágil e pálida deixa ouvir o murmúrio do passado. Mostra salões, claustros e caminhos que ligaram gerações desaparecidas.

Bastará uma mudança no tempo, algumas chuvas abundantes, e tudo regressará ao silêncio. O verde voltará a cobrir os sinais que o calor revelou. Mas o olhar atento de um verão rigoroso recorda-nos que a terra é um livro imenso, e que mesmo a erva mais banal pode ser porta de entrada para a memória mais antiga.


Paulo Freitas do Amaral

Professor, Historiador e Autor

 
 
 

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