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A cisterna da basílica em Istambul guarda a memória subterrânea de Bizâncio

No coração da antiga Constantinopla, sob as ruas movimentadas de Istambul, ergue-se um mundo subterrâneo que parece suspenso no tempo. A Cisterna da Basílica, construída no século VI, durante o reinado de Justiniano, é um dos testemunhos mais impressionantes da engenhosidade bizantina e da grandeza imperial que moldou o Mediterrâneo oriental.

A sua função era prática e vital. O reservatório garantia o abastecimento de água ao Grande Palácio de Constantinopla e à cidade em caso de cerco, aproveitando um sistema de aquedutos que ligava as colinas e trazia a água de quilómetros de distância. No entanto, a monumentalidade do espaço revela mais do que mera utilidade. Ali se encontram 336 colunas de mármore e granito, muitas reaproveitadas de templos antigos, que sustentam uma abóbada silenciosa, onde a penumbra e a humidade criam uma atmosfera de mistério quase religioso.

No fundo do reservatório repousam dois blocos esculpidos com cabeças de Medusa, colocados de forma invertida, um de lado e outro de cabeça para baixo. O significado deste detalhe permanece enigmático, oscilando entre a superstição e a simples reutilização de materiais da Antiguidade. Para quem desce às galerias iluminadas por reflexos de água, a visão dessas figuras mitológicas transforma a visita numa experiência entre o sagrado e o profano, como se a cidade escondesse nos subterrâneos os fantasmas da sua própria história.

A cisterna atravessou séculos de esquecimento. Durante o domínio otomano, caiu em desuso, mas nunca perdeu a sua aura lendária. Viajantes europeus do século XVI, como Petrus Gyllius, redescobriram-na e relataram com espanto a visão das colunas emergindo das águas escuras, sustentando o peso invisível da cidade. Hoje, transformada em espaço cultural e local turístico, continua a revelar-se como um dos lugares onde Istambul mostra mais claramente a sua natureza dupla, bizantina e otomana, oriental e ocidental.

Visitar a Cisterna da Basílica é entrar numa memória subterrânea que resiste ao esquecimento. Cada gota que ecoa nas abóbadas recorda que a grandeza de uma civilização não se mede apenas pelo que ergue à superfície, mas também pelo que guarda nas sombras para assegurar a sua sobrevivência.


Paulo Freitas do Amaral

Professor, Historiador e Autor

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